quarta-feira, 17 de abril de 2024

Amor

 Amor

é um laço 

invisível 

incandescente 

de fios finos

infinitos 

cortantes


Amor 

é curva

águas turvas

rasas ou profundas

correntes




Escrito para a Oficina "Onde está o amor? Parte III", cortesia dos lindos do Coletivo POC (@coletivo.poc)


Abril de 2024



quarta-feira, 22 de maio de 2019

Declaração Universal dos seus Direitos

A você 
não serão concedidos direitos
Só deveres.
Não insista.

 Não lamente. Cumpra suas ordens.

Chore se precisar
Lá atrás
No escuro.

Não lamente. Cumpra suas ordens.

Não há outros para fazer
 o que você tem de fazer.
Só há você. Faça.

Não lamente. Cumpra suas ordens.


domingo, 5 de maio de 2019

E.T.

Eternamente Tua
Serei
Daqui por diante
Sem regras
Para o que houver

Eternamente Tua
Pelo prazo indeterminado do infinito
Advirto de antemão:
Minha última febre durou entre seis e sete anos
Depois disso, sofri no máximo leves resfriados

Eternamente Tua
Por escolha minha, não tua
Porque não acredito em mentiras mal estruturadas
Em qual Universo eu acreditaria que não me queres?
A mim? Aquela a quem todos cobiçam

Eternamente Tua
Sei que não és imune ao meu veneno
Quanto te feri, não foi para te matar, como menti antes
Cravei meus dentes em teu braço para inocular nele o veneno do meu amor
Porque saber-se amado é saber-se desejado

Eternamente Tua
E o desejo é contagioso, inebriante, irresistível
Percebe-se pelo cheiro, pelo movimento, pelo olhar
Se eu te desejo, e tens consciência disso, então teus olhos cruzaram com os da serpente
Encontra-te agora mesmerizado, paralisado pelo medo, trêmulo pela eminência do perigo, em alerta de fuga, pois estás consciente do teu papel de presa: a serpente te deseja

Eternamente Tua
Não te enganes, não és caça, nem pássaro na gaiola,
És estrela, és musa
A entrega é minha, sou tua, permaneces livre
Escravos seremos apenas de nosso medo de sofrer, de nossas camadas e camadas de amor próprio e autoproteção, nossa verborragia, nosso riso nervoso, nossos ritos de tornarmo-nos repulsivos e assustadores para os outros, porque manter os outros longe é a nossa forma de protegê-los das monstruosidades que encerramos em nossos peitos, porque precisamos proteger os outros desta potência de maldade que conhecemos em nós mesmos, mas que mantemos escondida, porque somos,  por princípio e escolhas, bons

Eternamente Tua
Entregue
Desarmada
Porém, não te animes
Eternamente insubmissa
Eternamente eu
Eternamente teimosa, prolixa, caótica, Pink
E Tua
E.T., Ana


quinta-feira, 2 de maio de 2019

Há tanto tempo

Faz tempo que não escrevo.
Como vai?
A distância se pôs entre nós
e ficou maior sem sentirmos.

Então veio o silêncio.
Sem mais palavras,
sem acenos,
sem bons dias e boas tardes polidos.

Éramos tão amigos,
íntimos,
até não sermos.

Foi o tempo que nos separou
Sim, foram as horas
os minutos
os segundos
os ditos
os não ditos

Quem nos separou foi o espaço
nos perdemos
estávamos no mesmo lugar
mas em tempos diferentes
remotos
futurísticos

Foi o devir que nos separou
nossos sonhos
não sincronizados
fora de ritmo
nossos passos
descalços sobre pedra quente
em tijolos vermelhos de sangue

Foram as feridas
não curadas
envenenadas
enegrecidas
encobertas por falsos sistemas de autoproteção

Foram as lembranças
doloridas
indeléveis
traumatizantes
repetitivas
obsessivas
sempre presentes
não esquecidas

Foi o medo que nos separou
das multidões
da morte
de sofrer
de amar
de se entregar
do fim...

o Olho



Ganhei recentemente um olho a mais
desses que veem além

desde então...

eu vejo utilidade nas coisas 
antes que elas tenham utilidade

sinto o perigo
antes que ele dobre a esquina

sinto o calor das lágrimas
antes que elas escorram

sinto o enrubescer da face
antes do sorriso

ouço o coração que acelera ao meu passar
escuto o vento roçar nos caules verdes
pressinto o olhar que se lança ao vento
saboreio a saliva dos tísicos moribundos
aspiro o ar do pulmão dos afogados
ondeio com o tontear dos ébrios
caminho sobre os passos dos desesperados
sorrio para os botões de flor
aspiro a fumaça dos motores
exalo o desejo que me tens


Todas as coisas
as mais inúteis
estão interligadas.

Faço minha mala no escuro
roupa para uma semana
sem conferir quais peças vão

visto-me como quem vai à guerra

Dobro em quarteirões desconhecidos
encontro amigos desaparecidos

Ando errante pelos becos
descubro o amor

Descarto o uso de lingeries
rejuvenesço dez anos

Olho todas as coisas como se fossem novas
repito palavras como se fossem música
aprendi a ouvir música
e ouvir os pássaros
e a sentar na grama molhada
só para sentir seu cheiro

Abraço amigos da vida toda
aos quais eu somente dizia 
bom dia

Choro copiosamente a morte de desconhecidos
perdoo as almas condenados ao inferno
assumo alguns pecados inconfessos
cometo outros no caminho

Pela primeira vez na vida
Acho que talvez me aceitem no Céu.

Tudo isso foi possível
por causa de um ponto
negro sobre branco
vazio
zero
deus
estático 
dinâmico
modal
fractal
performático


Tudo isso foi possível
por causa do tempo
da migração das almas
de eu já ter nascido
cavaleiro
bruxa
cachorro
já ter conjurado magia de sangue
ter trocado carne por ressurreição
ter sacrificado vidas no altar do poder infernal
ter mandado almas ao Diabo
ter trocado a minha alma por uma desforra
e no final...
ter exaurido toda a energia do universo em um único feixe de raio branco

Tudo isso foi possível
porque eu me aceitei
como sou
como fui
como serei
sem censura



quarta-feira, 6 de julho de 2016

O dia em que me tornei Gregor Samsa Ou A metamorfose



Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, percebeu que não era mais a mesma do dia anterior. Suas entranhas revolviam-se em seu ventre, como uma pia velha que há muito não sabe o que é encanação nova. O conteúdo do seu estômago decidiu que o ralo era melhor recanto do que os seus intestinos, e pelo ralo escoou, esverdeado a princípio, líquido transparente após horas de vômitos intermináveis.
O que havia? Caíra vítima da última epidemia apocalíptica da moda, mais um mega vírus filho das mudanças climáticas daquele início de milênio amaldiçoado, que as pessoas teimavam em enxergar como um novo milênio igual a qualquer outro? Morreria assim, sem o glamour de uma tísica tez dos poetas moribundos? Nem mesmo o amarelão de uma exploradora do continente selvagem, carregada em liteira por africanos lustrosos sob o sol escaldante do novo mundo? Nada disso, aliás, só isso, só o cheiro desagradável de seu próprio conteúdo compartilhado com a fossa, pois ali, naquele fim de mundo latino americano não havia sequer uma companhia de águas e esgotos, havia só a fossa.
Na fossa, era onde estava. Decidiu consultar um médico. Amigo da família. Se é que as pessoas acreditam em amizades a uma altura dessas. Como quem não diz nada, ele disse, sem remorso, “ a senhora vai se tornar duas”.
“Eu? Por que eu? Não concordo.”
Não havia erro. Esta era uma daquelas coisas que independem da nossa vontade. Bipartir-se-ia. Seu código genético geraria uma cópia imperfeita de si, em versão miniaturizada, causando-lhe, naturalmente, grande incômodo no processo.
“Que me aconteceu?” pensou. Não era nenhum sonho. Inconcebível que sem o seu consentimento alguém houvesse determinado coisa dessa tramontana. Nenhum aviso prévio, carta requisitória, processo licitatório. Só o baque.
“De qualquer maneira, era, capaz de ser bom para mim — quem sabe?” Trabalhou para habituar-se ao ocorrido. Contou aos pares, avisou seu patrão. Seu marido chorou ao saber do ocorrido. Resignou-se mais tarde, serenado, talvez, pelo fato de que não seria ele a vítima de tão terrível metamorfose!
Meses transcorreram, terríveis momentos de expectativa. Antes de dividir-se, precisava dobrar de tamanho. Multiplicaram-se as células, convulsas umas sobre as outras, celebrando entre si casamentos misteriosos pelos mitocôndrios. Ia ficando cada vez mais difícil caminhar, comer, dormir, respirar. Todos tentavam, apesar das evidências em contrário, convencer-lhe de que isso era normal.
Até aquele fatídico dia, deitada sobre a amurada de seu jardim, tomando o último sol não cancerígeno da manhã, com seu imenso ventre de mulher duplicada para cima. Olhou para o belo céu azul e sentiu que já havia passado tempo demais ali, quis virar-se para a direita e endireitar-se para entrar em casa, quando percebeu que não o conseguiria sem imensa dor. As vértebras não lhe obedeciam mais. O ar fugiu, a dor atordoou seu orgulho, a voz saiu-lhe fraca:
“Socorro”.
Havia, por fim, se transformado em um personagem de Kafka. Tal qual Gregor Samsa metamorfoseado em inseto gigante, aprisionara-se de barriga para cima no quintal de sua casa, incapaz de se levantar sem recorrer aos familiares.
A mãe veio em seu auxílio.

“Toma juízo menina, onde já seu viu grávida deitar no chão desse jeito!”

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Manhã

A manhã não lhe trouxe nada além de vazio. Imenso vazio, impossível. Melhor seria sentir o nada, essa inexistência de sentir. Sentia, porém, o vazio, uma saudade da inconsciência dos sentidos. Seus sentimentos dispensavam explicações, doía. A alma doía, o peito doía, carregava o peso de um morto sobre a cabeça. O bolo incompreensível obstruía-lhe a garganta.
Não queria se levantar, nem ali na manhã recém-nascida, nem nunca. Dormir vinha sendo o único alívio diante da angústia intolerável dos dias. Perdera o amor por si, a vontade de comer, a expectativa de um futuro. Mexia-se porque ao redor lhe requisitavam. Algumas coisas ainda dependiam de um movimento seu, aguardava o momento em que se entregaria a imobilidade total.
A necessidade, essa mãe de todos os infortúnios, obrigou-lhe a voltar ao mundo dos vivos. Precisava trabalhar, bocas dependiam dos frutos de seu trabalho. Ainda que não se prendesse afetivamente a nada, a obrigação impunha-se sobre o seu ânimo.
A procissão diária das pessoas zumbi arrastava-se ao seu redor sem despertar-lhe dó ou raiva. Infelizes, todas as pessoas do mundo pareciam-lhe redondamente infelizes sem futuro. Como não percebiam? Estavam cegos pela ilusão de um bônus salarial, de quilos perdidos aqui e ali, de roupas novas e manias caras. Tudo aquilo pesava muito pouco para o alívio de sua dor. Se ao menos o mundo inteiro lhe deixasse em paz, talvez, quem sabe, talvez, pudesse pensar.
A reflexão já lhe salvara diversas vezes de abismos. Reter as palavras e tecer as ideias, deixar passar a tristeza e a mágoa, remoer no silêncio as milhares de possibilidades de se ver livre dos problemas. Mas o silêncio.... ah, o silêncio! O silêncio era impossível! Havia sempre alguém por perto para ligar uma TV, arrastar um móvel, passar pisando forte pela calçada em frente.

Apesar de tudo, alguns sons lhe acalmavam. Os cães latindo e uivando de madrugada, o ruído longe dos caminhões passando na rodovia. O vento assobiando no farfalhar das folhas. O zumbido surdo da torre de telefonia fazendo fundo ao borbulhar da água enchendo o reservatório do banheiro. Sons noturnos. Tudo o que se perdia com a volta da manhã. Ensolarada e lotada de movimentos desnecessários chegava novamente a manhã, e com ela, nada além do vazio.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Bonecas e o futuro

Ser Menina
Capítulo II
Bonecas e o futuro               



O jardim era um quadrado sem terra, um piso liso de cerâmica feia, cheia de padrões que gastava horas para conciliar. Sua brincadeira era caminhar pela cerâmica sem pisar no meio octogonal, somente nas partes lisas. Com os carrinhos do irmão dava para fazer uma imensa autoestrada cheia de bifurcações entre aqueles desenhos, e eles faziam. O irmão era o menino da sua vida. Havia também as  plantas de todos os jeitos, compridas, de folhas finas e largas, verdes, claras e escuras, roxas, venenosas, urtiguentas, porosas.

As sementinhas que caíam das plantas eram as colheitas das suas bonecas. Tantas bonecas, inúmeras para a sua cabeça de menina pequena. Rechonchudas, com boquinhas pequenas e rosadas, olhinhos azuis, calcinhas brancas, somente uma pitucha de cabelo no meio da cabeça lisa, ou então, cabeludinhas e loirinhas, com xuxinhas coloridas. 

Possuía uma única boneca pretinha, carequinha, o olhinho dela era azul e olhava sempre para a direita. Não era olho de vidro, era pintado. As mãozinhas eram as coisas mais perfeitas do mundo, com covinhas de bebês nas ligas dos dedos, só que os pezinhos eram tortos, ela não ficava de pé. Nenhuma das suas bonequinhas era criança. Eram todas adultas, moravam juntas por opção, não tinham pai ou mãe, e não eram irmãs. Havia os garotos, em número menor, estes dizia que eram do irmão. A maioria dos garotos não era gente, eram cachorrinhos e ursinhos, todos humanizados para melhor servir ao mundo de faz de conta.

Sentia pena de ver as suas pessoinhas sofrerem. Elas passavam frio, tinham fome, tinham sede, sofriam sequestros e vários casos de violência doméstica. Precisava estar lá para curar suas feridas e apaziguar suas brigas.

Mesmo criança, enxergava assim o mundo cheio de sofrimento e incômodos. Não se lembrava de em nenhum dia da infância ter previsto um futuro ameno. O futuro era o hoje com cara de bravo, ameaçando com coisas piores de porvir.

E nem era boneca, para ter quem lhe protegesse. Desejava o futuro somente por não ser o presente, por ser outra coisa, ausente.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Uma janela para qualquer lugar


Nasci filha de uma operária na grande São Paulo. Na nossa casa, havia alguns livros muito antigos, comprados de segunda mão pelo meu tio, único da família a cursar além do antigo ginasial. Eram livros de física, química, sistemas elétricos, todos com pequenas ilustrações de maçãs caindo de árvores, homens levando choque e moléculas se dividindo e se reunindo. Os meus preferidos eram os de inglês, porque mostravam histórias completas de crianças que iam a lugares e apontavam para os objetos dizendo seus nomes. Lembro bem de uma ilustração em que um caçador em pé numa canoa atirava em patos, ele ia contando o número de patos que caíam dentro da canoa, até a canoa ficar pesada demais para que o caçador se mantivesse equilibrado sobre ela. No último quadrinho, um enorme crocodilo se aproximava da canoa com cara de faminto e com um balãozinho de pensamento escrito... “One...”
Assim se passou a minha primeira infância. Estou certa de que a televisão exerceu maior influência sobre mim neste período, e talvez pela vida toda. Devo ter tomado conhecimento dos maiores clássicos da literatura pelos desenhos. O Pica-pau me ensinou sobre Pancho Villa, Dulcinéia, Roma, Nero, a Torre Eiffel; Chaves e Chapolin Colorado eram de fato meus heróis, imitávamos as estripulias de ambos, eu era a Dona Florinda e meu irmão era o Professor Girafales, e assim alternávamos até que cada um ocupasse todos os papéis e falas geniais.
Então, um dia, minha mãe decidiu que eu devia aprender a assinar meu nome, porque eu ia tirar meu primeiro RG. Foi um custo, o tempo que eu havia passado no jardim de infância não tinha me ensinado muita coisa. As professoras me empurravam cadernos para copiar as letras e riscar em cima de tracejados e colorir figuras, eu detestava tudo, inclusive a escola e as professoras. Elas gritavam com as crianças e por mais que eu ficasse quieta ainda podia ouvi-las gritar com as outras crianças. Mandavam a gente fazer fila e eu não gostava de filas. Mandavam a gente cantar, mas eu não gostava de cantar na fila, então eu só mexia a boca fingindo que estava cantando, e as professoras gritavam novamente para nós cantarmos alto. Minha mãe decidiu me tirar da escolinha, afinal, eu nem estava aprendendo a assinar meu nome, eu passava metade do tempo da aula chorando pra ir pra casa e é claro que as professoras diziam isso pra minha mãe. O caso é que a minha mãe devia achar que eu era muito nova e chorava de saudade dela. Estava enganada, eu estava acostumada a ficar longe dela, porque ela sempre trabalhou fora, quem cuidava de nós era minha vó: eu chorava porque não gostava da escola.
Minha mãe comprou uma coleção de livros infantis que eu guardo comigo até hoje. Contos de fadas, fábulas do mundo todo, clássicos. Ela lia pra gente todas as noites antes de dormir. Aos sete anos eu fui para a escola pública. Tia Rosângela foi minha professora da primeira série. Como todos os meus coleguinhas eu não sabia ler, só conhecia as letras. Não me lembro de como, mas em três meses, assim conta minha mãe, eu já estava lendo. Daí ela pedia pra eu ler as histórias para ela e pro meu irmão. Eu estava lendo as mesmas histórias que antes só podia ouvir.
Veio a segunda série, minha mãe comprou um Atlas Mundial pra gente. Meu irmão era apaixonado pelos mapas. Então eu tive a ideia de ensiná-lo a ler para ele parar de ficar me pedindo para dizer o nome dos países. Eu tentei. Peguei meus cadernos do ano anterior e repassei as lições, falei das sílabas,  pouco tempo depois ele lia tão bem quanto eu.
O meu irmão virou a atração lá de casa, os tios nos visitavam e ficavam perguntando a capital dos países para ele, e ele os sabia de cor (até os da África e Ásia). Eu sabia alguns também, mas ele era três anos mais novo do que eu, deviam achar que na minha idade saber das coisas era de obrigação.
Veio a terceira série e nós mudamos para o litoral. A escola era estadual e tinha uma biblioteca que deixava a gente levar os livros para casa. Comecei a pegar os livros emprestados num dia e devolver no outro dia. O professor que cuidava da biblioteca brigou comigo, ele achava que eu subia até lá só pra matar aula, não acreditava que eu lia o livro todo de um dia para outro. Mas eu disse que lia mesmo, e contei a história do livro. Ele resolveu me emprestar mais de um livro por vez. Claro, eram livros pra criança. O maior devia ter só uma 50 páginas com letras enormes.
Sempre ri e chorei com os livros que li. Senti medo, venci vilões, refletia sobre as grandes dificuldades do mundo e como era bom estar segura dentro da minha casa, tendo aquela janela aberta para o mundo, de onde eu podia enxergar qualquer lugar.

Continuei lendo, de tudo. Aprendi a gostar de quadrinhos. Nunca sobrou muito dinheiro para comprá-los, mas dava para pedir emprestado, pegar em bibliotecas. Resolvi cursar Letras, foi conselho da professora de português do ensino médio. Ela disse que eu tinha talento e não devia desperdiçá-lo. Acho que ela estava certa. Hoje eu tenho mais livros do que estantes, e olha que não compro livros há anos. Eu os leio pelo computador e pelo celular. Eles nunca foram tão brilhantes.

(Memórias Literárias escritas para um fórum de fomento à escrita e leitura)

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Ser menina

Menina
Capítulo 1

Ser Menina

           Nascera mulher e por obrigação devia portar-se como uma dama. Ser dama, na verdade, não lhe entrava na cabeça. Primeiro, porque "dama" é uma palavra medieval utilizada até hoje, século XXI, totalmente descontextualizada. Mas o fora de contexto não ia por sua mente infantil, ser dama era o mesmo que ser menina boazinha.  Quase ser princesa; gostaria de ser princesa, mas era pobre.       
         Era pequena a  ponto de brincar de balanço, porém lhe proibiam usar roupa curta ou mostrar a barriga. Era proibido ainda brincar no meio dos meninos. Tinha tantos primos, todos da sua idade, todos com brinquedos novos e novidadeiros, sabendo coisas diferentes, mas não podia brincar com eles.